segunda-feira, 30 de março de 2009

Ninguém mais diz não sei










"Não conheço mais ninguém que diga, com ares de autêntica modéstia: "não sei". Todos professam conhecimento sobre tudo, opinam sobre qualquer coisa, exercem uma rede de certezas que me deixa entontecido. Parece que virou crime dizer "não sei".
Se o cara fala isso no emprego, logo será encaminhado ao departamento pessoal e fichado no arquivo morto. Se ele diz para a esposa ou namorada, sugere que andou aprontando. Basta chegar em casa tarde da noite e a mínima indefinição transforma-se em suspeita de infidelidade. A regra é falar sem parar, mesmo quando o assunto não começou. Diálogos epilépticos, pulando freneticamente de temas, sem fim possível. Ou é uma época prodigiosa de gênios ou a maioria das pessoas está mentindo.
Houve um tempo em que se queria ser Napoleão no hospício e Pelé, Martha Rocha, Einstein e Fellini na vida. Hoje o desejo secreto de cada um é ser Google. As conversas giram em torno de referências e não de conteúdos. Encontra-se a informação, mas não se desenvolve o raciocínio para chegar até ela. O mais importante na matemática é o cálculo, nunca o resultado final. Fica-se atualmente satisfeito com o resultado e se envaidece de dizê-lo com rapidez, na ponta da língua. A velocidade tornou-se o objetivo primordial. A busca se encerra no próprio ato final antes de ter realmente começado. O que adianta uma herança que não é vivida?
Com a internet, orkut e céleres estruturas de informação, apesar de tantas virtudes comunicativas e de convivência que geraram, criou-se uma geração de palpiteiros, mais do que formadores de opinião. A vivência foi substituída pela vidência. Pior que enganar os outros é se enganar. Na verdade, dura verdade, a cultura não se adquire sem esforço, inquietações, ensaios e exercícios, vacilos e resistência. A memória não se dá bem com facilidades. A afetividade se desenvolve na dúvida, na absorção amadurada do raciocínio. Inteligência é também a humildade de se calar e de se retirar para estudar mais, ao contrário do que vem sendo alardeado aos quatro cantos do cérebro: de falar a todo momento para mostrar erudição. Ninguém mais leva tema para casa. Até as crianças estão ansiosas demais para escutar histórias e repetem "eu sei" no início delas. Não é um sintoma da pressa essa conversa fiada sem a devida contrapartida da lentidão de ouvir e aprender? A necessidade de aceitação social não estaria matando a honestidade da solidão?
Acredito que é o momento de preservar a ignorância, de instaurar uma "Renascença às avessas". Se a Renascença valorizou o homem completo, o Leonardo da Vinci, a multiplicidade dos talentos em um único indivíduo (pintor, inventor, fabulista, cientista, poeta, pensador), deve-se entusiasmar agora o "homem incompleto", insuficiente, que admite desconhecer temas e assuntos para não atrofiar sua curiosidade. Sem curiosidade, não há nem motivo para estar aqui lendo a Super ou este artigo.
Um teólogo das antigas, Nicolau de Cusa (1401-1464), elogiado por Giordano Bruno, escreveu um livro chamado Douta Ignorância, em que recomenda a conscientização do que não se aprendeu para saber mais. Quem não sabe vai atrás. Quem diz que sabe apenas se conforma em dizer que sabe. A sinceridade é a melhor forma de não sofrer para depois explicar o que o Google não listou. Viver já é uma pós-graduação e não admite fingimentos porque a vida não dá trégua para a imaginação ou fornece instruções de comissário de bordo. Exige o mais difícil sempre. Antes de um beijo, de um abraço, de uma despedida, não se recebe pausa para pensar o que fazer e escrever rascunhos. Não há tempo para raciocinar nem existe curso preparatório para viver — vive-se de cara.
O filósofo romeno E.M. Cioran, por exemplo, autor da obra Silogismos da Amargura, produziu breves apontamentos e retratos sobre a história das idéias. Ele era um apóstolo do pessimismo, mas alguns de seus textos mostram que pensar além das aparências também serve como bombinha para o pulmão, pois a realidade pode sufocar o talento e a criatividade."
Escrito por Fabrício Carpinejar

segunda-feira, 23 de março de 2009

Psicomotricidade









"Ter a possibilidade de mudar objetivos e ações, não se perdendo no rastro do desejo, mesmo que o caos ocorra, é permitir o exercício de reconstrução e organização de um corpo que não se abstém e muito menos se perpetua nas amarras do que lhe dá sentido e na relação com o seu próprio eu/não eu. Entre o ser/corpo e o estar/corpo, mediado pelo tempo que não pode ser sem o espaço, será, talvez, o lugar do encontro da unicidade do ser, enquanto que a falta de existência desse corpo, fora do tempo e do espaço, desse não ser, significa abdicar do sentido maior, do sentido da própria existência. A clareza e a possibilidade de viver essa mediação, se dá através da ação corporal, no espaço de liberdade, onde o corpo possa ser/estar, orientado por um espaço/tempo que lhe é próprio, permitindo expandir o quanto possa e, nessa expansão, negar-se a ser pequeno.
Nesse espaço expansivo e de ação, o objeto traz a representação, evoca o passado através do presente, e este por sua vez denuncia o futuro; a circularidade se faz presente, não no movimento do enclausuramento, mas na direção da espiral, e o desenvolvimento assim se faz na organização/reorganização. O objeto aqui deve ser entendido como o próprio corpo ou o corpo do outro ou objetos comuns, matéria com forma, que permitem por sua presença, a evocação de lembranças e representações advindas das redes perceptuais, dando sentido a ação e direção ao ato motor. "