terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Pânico


UNHAS DO INCONSCIENTE
Num final de tarde, poucos anos atrás, eu mergulhei na escuridão. Estava
nos estúdios da emissora onde trabalho quando percebi a realidade se
afastando de mim. Nada havia acontecido de especial naquele dia, nenhuma
chateação além das habituais, minhas cenas tinham sido gravadas
regularmente, e era hora de voltar pra casa. Só que no momento de partir,
eu não conseguia fazer os movimentos corriqueiros para livrar-me do figurino
do personagem, colocar minhas roupas pessoais, pegar o carro, e sair dali.
Num esforço descomunal, e contando com algumas poucas fagulhas de
racionalidade, dei conta de arranjar um motorista que me levasse, deixando
meu próprio carro pra ser resgatado quando o mundo retornasse ao eixo. Por
sorte, o rapaz era quase mudo ou muito sensível e percebeu que o momento não
era pra conversas - perguntou apenas pelo endereço e tocou na direção.
Assim, por uma hora dentro daquele carro, fui mergulhando cada vez mais
fundo nos abismos turbulentos de um universo que me engolfava rápida e
violentamente. Quando cheguei em casa, cem anos depois, tudo estava escuro,
não havia alma, nem o cachorro estava ali pra me lamber a inquietação. Mal
conseguia andar.
Cambaleando, acendi uma luz no último quarto - único interruptor que
encontrei - fui ao telefone, e numa provação olímpica consegui discar pra
meu ex-marido. A cozinheira que fora nossa e agora trabalhava para ele
atendeu e percebeu que algo sinistro acontecia - apesar de mim, porque eu
não dizia coisa com nexo. A moça chorou do outro lado e desligou,
mas fiquei com a impressão de que ia me ajudar... Em outro soberano
esforço, me veio o número de uma amiga: "estou caindo da vida, vem me
salvar". Eu me enredava no mistério abissal e não havia ninguém pra me
trazer de volta - a solidão era paralisante. Tinha vergonha de mim, sentia
raiva, estava do outro lado de todas as fronteiras, mas a brutalidade de um
comando inconsciente me punha frágil e incapaz de escolher um caminho para
territórios mais estáveis. Olhei uma pessoa no espelho, não reconheci,
andei, respirei, rezei, deitei, gritei, andei, rezei, respirei, rezei...
Quando finalmente chegaram meus amigos, todos de uma vez, eu já voltava a
mim e ninguém parecia compreender que a loucura acabara de me visitar para
acompanhar-me ao mundo de lá. Tentei explicar mas, extenuada, não consegui.
O marido de minha amiga, que era espírita, me deu um passe. Meu ex-marido,
que era preocupado, me deu um pito, minha amiga que é esplêndida me deu um
abraço, e no final, rimos todos aliviados.
O que passou, compreendi depois, foi algo bastante comum que chamam de
ataque de ansiedade ou de pânico, e foi dos maiores medos de minha vida.
Jurei naquela hora, que jamais me permitiria outro momento semelhante, e até
hoje, benzadeus, não descumpri o combinado. Já havia tido, com o uso de
drogas, experiências de atravessar fronteiras para espiar o lado de lá, mas
nunca a loucura me havia batido à porta assim, a luz do dia, sem que eu a
provocasse.
A loucura permanente ou episódica dói terrivelmente, e isola do convívio com
outro. Por outro lado, ela descortina um universo caleidoscópico e
intangível para os normais. O matemático John Nash, que inspirou o filme
Uma Mente Brilhante, sofreu anos de alucinações fantasmagóricas e, com com grande esforço intelectual, aprendeu a driblar sombras paranóides. Em sua
autobiografia, ele diz: "Parece que estou pensando racionalmente de novo,
com fazem os cientistas". Mas ele acrescenta logo adiante: "Isto não é uma
coisa que me deixe totalmente alegre, como aconteceria no caso de ter estado
doente fisicamente e recuperado a saúde. Porque a racionalidade de
pensamento impõe um limite no conceito cósmico que a pessoa tem".
Se a gente nunca olhar pra fora dos muros da nossa cultura, de nossas
convenções, se não procurarmos territórios desconhecidos para adentrar o
ilimitado, também não conheceremos o paraíso na terra. Hoje, quando me
acontecem momentos de medo e que me vejo de novo presa nas unhas do
inconsciente, reencontro-me depois, quase agradecida. Aprendi a não ter
medo de sentir medo. Aprendi que a vida tem disso, e que se a gente se
deixa vagar um pouco pela escuridão sem pressa e sem atrapalhar, logo se
passa dali. E que depois das sombras existe o reino da imaginação onde vive
toda liberdade. E que ali mesmo dentro da gente, é onde nasce a luz de
sabedoria que ilumina e faz mexer o universo.
Maitê Proença, 2004