segunda-feira, 18 de maio de 2009

Minha santa ignorância.


Eu costumo dizer erroneamente que deve ser bom ser fonte de conhecimento, saber de assuntos específicos, falar de várias coisas importantes, explicar e entender recentes descobertas. Mas isso é tão absurdo, eu sou tão ignorante que me surpreendo diariamente com as fontes que descubro. Por exemplo, no mês passado conheci Kabir, um poeta indiano que escreveu coisas lindas que eu nunca tinha pensado antes como as sensações e memórias que guardamos no nosso corpo. Ele provavelmente não tirou isso do nada. Conheci também, com muita vergonha, por não ter conhecido antes: Osman Lins. No primeiro conto que li dele, chorei de soluçar, e já coloquei nos meus arquivos mentais, lindo. Ouvi esses dias também de um filósofo muito atual: Mário Cortella, que os nossos desejos estão sendo confundidos por nós por direitos. Ou seja, eu desejo aquilo e me acho no direito de possuí-lo. Incrível como ele chegou nessa conclusão, pensando agora é tão claro. Descobri em Bauman que o desejo deseja o desejo e não a satisfação, e que essa é a marca do ser globalizado. E me senti imensamente diferente por isso.
Não existe a fonte, existem dezenas delas espalhadas, trezenas de idéias circulando que não são minhas nem serão, mas não me impeço de apreciá-las. Fico um pouco irritada às vezes porque todos pensavam ou pensam coisas tão comuns a mim hoje, tão próximas daquilo que estou sendo agora. É esquisito, mas em cada singularidade existe um número enorme de discursos, textos, histórias e contextos que trazem aquilo que vai se tornar só nosso.
E a minha santa ignorância é tão plena. Com muito prazer que venham conhecimentos sentidos e que tentem me convencer de que não é só isso.

A partida




"Hoje, revendo minhas atitudes quando vim embora, reconheço que mudei bastante. Verifico também que estava aflito e que havia um fundo de mágoa ou desespero em minha impaciência. Eu queria deixar minha casa, minha avó e seus cuidados. Estava farto de chegar a horas certas, de ouvir reclamações; de ser vigiado, contemplado, querido. Sim, também a afeição de minha avó incomodava-me. Era quase palpável, quase como um objeto, uma túnica, um paletó justo que eu não pudesse despir.
Ela vivia a comprar-me remédios, a censurar minha falta de modos, a olhar-me, a repetir conselhos que eu já sabia de cor. Era boa demais, intoleravelmente boa e amorosa e justa.
Na véspera da viagem, enquanto eu a ajudava a arrumar as coisas na maleta, pensava que no dia seguinte estaria livre e imaginava o amplo mundo no qual iria desafogar-me: passeios, domingos sem missa, trabalho em vez de livros, mulheres nas praias, caras novas. Como tudo era fascinante! Que viesse logo. Que as horas corressem e eu me encontrasse imediatamente na posse de todos esses bens que me aguardavam. Que as horas voassem, voassem!
Percebi que minha avó não me olhava. A princípio, achei inexplicável ela fizesse isso, pois costumava fitar-me, longamente, com uma ternura que incomodava. Tive raiva do que me parecia um capricho e, como represália, fui para a cama.
Deixei a luz acesa. Sentia não sei que prazer em contar as vigas do teto, em olhar para a lâmpada. Desejava que nenhuma dessas coisas me afetasse e irritava-me por começar a entender que não conseguiria afastar-me delas sem emoção.
Minha avó fechara a maleta e agora se movia, devagar, calada, fiel ao seu hábito de fazer arrumações tardias. A quietude da casa parecia triste e ficava mais nítida com os poucos ruídos aos quais me fixava: manso arrastar de chinelos, cuidadoso abrir e lento fechar de gavetas, o tique-taque do relógio, tilintar de talheres, de xícaras.
Por fim, ela veio ao meu quarto, curvou-se:
- Acordado?
Apanhou o lençol e ia cobrir-me (gostava disto, ainda hoje o faz quando a visito); mas pretextei calor, beijei sua mão enrugada e, antes que ela saísse, dei-lhe as costas.
Não consegui dormir. Continuava preso a outros rumores. E quando estes se esvaíam, indistintas imagens me acossavam. Edifícios imensos, opressivos, barulho de trens, luzes, tudo a afligir-me, persistente, desagradável - imagens de febre.
Sentei-me na cama, as têmporas batendo, o coração inchado, retendo uma alegria dolorosa, que mais parecia um anúncio de morte. As horas passavam, cantavam grilos, minha avó tossia e voltava-se no leito, as molas duras rangiam ao peso de seu corpo. A tosse passou, emudeceram as molas; ficaram só os grilos e os relógios. Deitei-me.
Passava de meia-noite quando a velha cama gemeu: minha avó levantava-se. Abriu de leve a porta de seu quarto, sempre de leve entrou no meu, veio chegando e ficou de pé junto a mim. Com que finalidade? - perguntava eu. Cobrir-me ainda? Repetir-me conselhos? Ouvi-a então soluçar e quase fui sacudido por um acesso de raiva. Ela estava olhando para mim e chorando como se eu fosse um cadáver - pensei. Mas eu não me parecia em nada com um morto, senão no estar deitado. Estava vivo, bem vivo, não ia morrer. Sentia-me a ponto de gritar. Que me deixasse em paz e fosse chorar longe, na sala, na cozinha, no quintal, mas longe de mim. Eu não estava morto.
Afinal, ela beijou-me a fronte e se afastou, abafando os soluços. Eu crispei as mãos nas grades de ferro da cama, sobre as quais apoiei a testa ardente. E adormeci.
Acordei pela madrugada. A princípio com tranqüilidade, e logo com obstinação, quis novamente dormir. Inútil, o sono esgotara-se. Com precaução, acendi um fósforo: passava das três. Restavam-me, portanto, menos de duas horas, pois o trem chegaria às cinco. Veio-me então o desejo de não passar nem uma hora mais naquela casa. Partir, sem dizer nada, deixar quanto antes minhas cadeias de disciplina e de amor.
Com receio de fazer barulho, dirigi-me à cozinha, lavei o rosto, os dentes, penteei-me e, voltando ao meu quarto, vesti-me. Calcei os sapatos, sentei-me um instante à beira da cama. Minha avó continuava dormindo. Deveria fugir ou falar com ela? Ora, algumas palavras... Que me custava acordá-la, dizer-lhe adeus?
Ela estava encolhida, pequenina, envolta numa coberta escura. Toquei-lhe no ombro, ela se moveu, descobriu-se. Quis levantar-se e eu procurei detê-la. Não era preciso, eu tomaria um café na estação. Esquecera de falar com um colega e, se fosse esperar, talvez não houvesse mais tempo. Ainda assim, levantou-se. Ralhava comigo por não tê-la despertado antes, acusava-se de ter dormido muito. Tentava sorrir.
Não sei por que motivo, retardei ainda a partida. Andei pela casa, cabisbaixo, à procura de objetos imaginários, enquanto ela me seguia, abrigada em sua coberta. Eu sabia que desejava beijar-me, prender-se a mim, e à simples idéia desses gestos, estremeci. Como seria se, na hora do adeus, ela chorasse?
Enfim, beijei sua mão, bati-lhe de leve na cabeça. Creio mesmo que lhe surpreendi um gesto de aproximação, decerto na esperança de um abraço final. Esquivei-me, apanhei a maleta e, ao fazê-lo, lancei um rápido olhar para a mesa (cuidadosamente posta para dois, com a humilde louça dos grandes dias e a velha toalha branca, bordada, que só se usava em nossos aniversários)..."


Osman Lins: http://www.osman.lins.nom.br/

(“Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”)

segunda-feira, 4 de maio de 2009

A águia que

“O tempo está chegando quando o homem não mais lançará a
flecha do seu desejo para além de si mesmo e a corda do seu
arco se esquecerá de como vibrar ... O tempo está chegando,
quando o homem não mais dará à luz de uma estrela.
O tempo do mais desprezível dos homens...” (Nietzsche)
"A idéia desta estória não é minha. Meu é só o jeito de contar... Sobre uma águia que foi criada num galinheiro. E foi aprendendo sobre o jeito galináceo de ser, de pensar, de ciscar a terra, de comer milho, de dormir em poleiros... E na medida em que aprendia, ia esquecendo as poucas lembranças que lhe restavam do passado. É sempre assim: todo aprendizado, os vôos nas nuvens,o frio das alturas, a vista se perdendo no horizonte, o delicioso sentimento de dignidade e liberdade... Como não havia ninguém que lhe falasse destas coisas, e todas as galinhas cacarejassem os mesmos catecismos, ela acabou por acreditar que ela não passava de uma galinha com perturbação hormonal, tudo grande demais, aquele bicocurvo, sinal certo de acromegalia, e desejava muito que seu cocô tivesse o mesmo cheiro certo do cocô das galinhas...
Um dia apareceu por lá um homem que vivera nas montanhas e vira o vôo orgulhoso das águias.
-“Que é que você faz aqui?”, ele perguntou.
-“Este é meu lugar”, ela respondeu. “Todo mundo sabe que galinhas vivem em galinheiros, comem milho, ciscam o chão, botam ovos e finalmente viram canja: nada se perde, utilidade total...”
- “Mas você não é galinha”, ele disse. “É uma águia”.
- “De jeito nenhum. Águia volta alto. Eu nem sequer, voar sei.
- Pra dizer a verdade, nem quero. A altura me dá vertigens.
- É mais seguir andando, passo a passo.
E não houve argumento que mudasse a cabeça da águia esquecida. Até que o homem, não agüentando mais ver aquela coisa triste, uma águia transformada em galinha, agarrou a águia à força, e a levou até o alto de uma montanha. A pobre águia começou a cacarejar de terror, mas o homem não teve compaixão; jogou-a no vazio do abismo. Foi então que o pavor, misturado a memórias que ainda moravam em seu corpo, fez as asas baterem,a princípio em pânico, mas pouco a pouco com tranqüila dignidade, até se abrirem confiantes, reconhecendo aquele espaço imenso que lhe fora roubado. E ela finalmente compreendeu que seu nome não era galinha, mas águia... "
(Rubem Alves)

sexta-feira, 1 de maio de 2009