segunda-feira, 4 de maio de 2009

A águia que

“O tempo está chegando quando o homem não mais lançará a
flecha do seu desejo para além de si mesmo e a corda do seu
arco se esquecerá de como vibrar ... O tempo está chegando,
quando o homem não mais dará à luz de uma estrela.
O tempo do mais desprezível dos homens...” (Nietzsche)
"A idéia desta estória não é minha. Meu é só o jeito de contar... Sobre uma águia que foi criada num galinheiro. E foi aprendendo sobre o jeito galináceo de ser, de pensar, de ciscar a terra, de comer milho, de dormir em poleiros... E na medida em que aprendia, ia esquecendo as poucas lembranças que lhe restavam do passado. É sempre assim: todo aprendizado, os vôos nas nuvens,o frio das alturas, a vista se perdendo no horizonte, o delicioso sentimento de dignidade e liberdade... Como não havia ninguém que lhe falasse destas coisas, e todas as galinhas cacarejassem os mesmos catecismos, ela acabou por acreditar que ela não passava de uma galinha com perturbação hormonal, tudo grande demais, aquele bicocurvo, sinal certo de acromegalia, e desejava muito que seu cocô tivesse o mesmo cheiro certo do cocô das galinhas...
Um dia apareceu por lá um homem que vivera nas montanhas e vira o vôo orgulhoso das águias.
-“Que é que você faz aqui?”, ele perguntou.
-“Este é meu lugar”, ela respondeu. “Todo mundo sabe que galinhas vivem em galinheiros, comem milho, ciscam o chão, botam ovos e finalmente viram canja: nada se perde, utilidade total...”
- “Mas você não é galinha”, ele disse. “É uma águia”.
- “De jeito nenhum. Águia volta alto. Eu nem sequer, voar sei.
- Pra dizer a verdade, nem quero. A altura me dá vertigens.
- É mais seguir andando, passo a passo.
E não houve argumento que mudasse a cabeça da águia esquecida. Até que o homem, não agüentando mais ver aquela coisa triste, uma águia transformada em galinha, agarrou a águia à força, e a levou até o alto de uma montanha. A pobre águia começou a cacarejar de terror, mas o homem não teve compaixão; jogou-a no vazio do abismo. Foi então que o pavor, misturado a memórias que ainda moravam em seu corpo, fez as asas baterem,a princípio em pânico, mas pouco a pouco com tranqüila dignidade, até se abrirem confiantes, reconhecendo aquele espaço imenso que lhe fora roubado. E ela finalmente compreendeu que seu nome não era galinha, mas águia... "
(Rubem Alves)

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